
Quase uma semana havia se passado desde o falecimento de Agustín Magaldi. A missa de sétimo dia tinha sido no fim da tarde. E pela primeira vez desde o enterro, Rebeca tinha saído de casa. Estava, porém, acompanhada por sua melhor amiga Teresa, uma jovem modista.
- Becca, se sente melhor? – perguntou a acompanhante.
- Obrigada por vir comigo, Teresa. Eu, porém, não sei se vou conseguir superar aquilo – respondeu a florista tristemente.
- Por favor, não me conte de novo aquela loucura que você acha que viu – respondeu Teresa meio enfezada. A jovem recusava-se a acreditar que o cantor Agustín Magaldi ainda permanecia vivo. E menos ainda era possível ele estar chupando o sangue de humanos. Ela era a única sabedora do real motivo do abalo de Rebeca. A razão pela qual a moça passara aqueles cinco dias trancada em casa. Mal comia e só dormia após espalhar galhos de arruda pelas janelas e portas. Sequer tinha ido trabalhar. Loyola lhe deu alguns dias de licença, pois podia ver a terrível tristeza de Rebeca.
“Qual seria a verdade?”, pensou a amiga. Talvez tivesse acontecido algo terrível com a florista. E esta não conseguisse contar por estar muito amedrontada, talvez um motivo pelo qual inventara tal absurdo. Talvez fosse relacionado ao desaparecimento de “Felipe, o Bardo” e sua gangue, ocorrido há alguns dias. Ninguém no bairro sabia o paradeiro deles. Os companheiros de gangue, um total de sete, porém, apareceram mortos em uma vala próxima ao aterro de lixo dois dias após. Todos sem uma gota de sangue. Com uma feia marca no pescoço causada por mordida de origem desconhecida. Mais daquelas mortes que ocorriam aos montes sempre quando algum famoso do tango passava deste para o outro mundo.
Teresa recordava-se de que, antes da “Voz Sentimental”, outros já tinham ido. Funerais consideravelmente cheios. Inúmeras histórias de alguns presentes que permaneceram no cemitério após anoitecer. Algumas dessas eram escabrosas, dizendo o mínimo. A moça não acreditava em nenhuma delas, mas admitia que eram impressionantes. E o pior: ela quase voltava a acreditar ter visto algo há três anos, quando voltava da loja de doña Mariquita. Um alguém a seguiu a maior parte do trajeto. Uma pessoa que ela jurava ser Pascual Contursi, falecido alguns anos antes. Ou uma pessoa parecida.
Seria possível que aqueles homicídios tivessem ligação? Poderia ser algum assassino em série agindo por motivos fora da lógica?
“Coincidência demais”, a senhorita refletia consigo mesma enquanto esperava o bonde junto com a amiga. O veículo enfim chegara. Ambas subiram. Rebeca permanecia absurdamente silenciosa, como se falar pesasse na garganta. Teresa a entendia a despeito de não saber realmente a verdade. De repente, alguém subiu na quarta parada após a qual as amigas haviam pegado o transporte. Rebeca apertou fortemente a mão de Teresa ao ver quem era. A jovem, por sua vez, espantou-se: - Deus, eles são idênticos!
Ele nada disse enquanto sentava-se garbosamente em um banco vazio. A florista, com espanto, percebeu que havia anoitecido há algum tempo. Tremeu como se tivesse frio. A amiga, a seu turno, desviou o olhar sentindo algo ruim apoderando-se dela. Tal coisa durou quase todo o trajeto. As duas aliviaram-se quando finalmente desceram. Por sorte estavam próximas de onde moravam. Caminhavam quando uma voz masculina surgiu literalmente do nada: - Boa noite.
- Boa noite, senhor. Que deseja? – Teresa perguntou com espanto quando Rebeca simplesmente não conseguiu falar. Era o homem do bonde. Como ele podia estar ali? Elas não o tinham visto descer.
- Preciso de uma informação se não se incomoda. Pode...? – ele perguntava de modo estranho quando outra voz igualmente máscula gritou aproximando-se com rapidez: - Pare agora! Nem mais um centímetro perto delas, monstro!
Teresa ia questionar quando Rebeca puxou-a com rapidez: - Temos que correr! Agora!
- Nem mais um passo – as duas jovens e o homem estacaram no meio da rua vazia. A voz dele assumiu um estranho tom de irrecusável ordem.
A florista forçou o andar de tal maneira que de repente parecia capaz de romper o chão. Não se permitiria ser atacada por ele e muito menos que sua amiga fosse mordida. Foi quando um terceiro apareceu com um enorme ramo de arruda em mãos, espantando o outro que dera a ordem: - Tire isso de perto de mim!
Rebeca e Teresa quase caíram ao se verem livres do misterioso comando, mas a segunda gritou ao ver as presas e os olhos em vermelho-sangue. A florista custosamente tampou o grito, pois não iria mostrar medo. Precisava manter-se firme para firmar a assustada amiga, que dizia tremendo sem parar: - Não... pode ser! Isso... é...! Você... tinha razão! É ele!
- Teresa, não tenha medo. Eu vou te proteger – disse a jovem com firmeza embora por dentro se sentisse temerosa.
- O que você faz aqui, Fortesconi?! – perguntou o homem agora em movimento.
Ele nada disse em resposta. Apenas pegou uma garrafa de dentro do bolso e ofereceu ao agora revelado vampiro. Mantinha a arruda perto para evitar que ele se aproximasse. Quando finalmente a criatura bebia da enorme garrafa, o “gringo” pôde afinal dizer o que ali fazia: - Ele... atacou uma prima minha que mora em Palermo.
- Eu não te falei aquele dia?! Se você me ouvisse com mais frequência, a sua prima não estaria correndo risco de vida! – exclamou o homem, cuja corcunda espantava as amigas ali paradas.
- Eu costumo ser atencioso com as minhas fãs, doutor. E a propósito, obrigado por me deixar livre – disse o vampiro agora mais tranquilo. E ao que tudo indicava, saciado.
- E você chama atacar o pescoço de uma moça indefesa de “ser atencioso com as fãs”? – exclamou Rebeca exaltada. Ela sabia que o melhor era não mostrar temor. Tsekub, seu pai adotivo, lhe ensinara que a verdadeira coragem consistia em agir mesmo com medo.
- Você podia tê-la matado, Don Magaldi! – Teresa ainda mantinha a educação a despeito do pavor.
- Como sempre, você fazendo tempestade em copo d’água, ‘señorita’ Rosas – respondeu Magaldi para depois dizer aos risos, tentando esconder os caninos ainda evidentes: - A sua prima, doutor Fortesconi, de alguma forma, descobriu sobre mim e me pediu um desejo em troca do silêncio dela. O desejo: experimentar a mordida do Drácula.
- Você disse que ela descobriu?! – o corcunda exclamou com espanto.
- Como assim?! Loredano, você sabe explicar isso? – Fortesconi não acreditava em um absurdo como aquele ser possível.
- É provável que a sua prima tenha ficado no cemitério bem depois do enterro. Algo não muito surpreendente considerado a quantia de gente presente no funeral do cantor. As ruas estavam quase impossíveis de transitar, se me recordo. E mesmo depois do sepultamento houve gente esperando para depositar flores. Possivelmente ela viu quando Agustín Magaldi ressurgiu da morte, transformado em vampiro. E como os estudiosos disso sabem, vampiros exercem grande fascínio em ambos os sexos.
- Me permite que pergunte: por acaso é algo parecido com o que as senhoritas fazem depois de casadas? – Rebeca elaborou o melhor que pôde para não parecer uma mulher sem valor aos olhos deles. E espantava-se com a nova palavra aprendida. Sete apavorantes letras.
- Nota-se que a senhorita é curiosa. E muito inteligente. Porque é exatamente isso – Loredano respondeu sem rodeio algum.
- Meu Deus – Teresa enrubesceu violentamente. De repente, recordou-se de quando Agustín havia estado na loja de Doña Mariquita acompanhado de uma adolescente. Que se chamava María Eva Duarte.
- Se me perdoam o comentário, não vejo motivo para fazerem estas caras de vergonha. Uma mulher não perde seu valor de caráter apenas por querer ser livre – disse o corcunda para espanto geral. Até Magaldi fez cara de quem não acreditou ter ouvido aquilo.
- Sempre soube que o senhor era diferente de todo mundo, mas nunca achei que era tanto! – Fortesconi exclamou.
- Se houvesse mais gente “diferente”, o mundo seria um local melhor – Agustín disse com a cara fechada.
- Olha quem falando – retrucou o italiano enfezado ainda mantendo a arruda perto de si.
- Os senhores, por favor, tenham o respeito de não discutir no meio da rua – disse Teresa com a voz entrecortada.
- Concordo com minha amiga. Agora, porém, precisamos ir para casa. Está tarde e minha mãe já deve estar preocupada. Ela é uma mulher doente e precisa de cuidados. E Teresa tem que trabalhar amanhã cedo – disse Rebeca séria.
Agustín Magaldi assentiu, mas antes perguntou: - Pelo menos me permite saber como se chama, senhorita das rosas colombianas?
- Rebeca Tsekub. Peço-lhe que tenha a bondade de não me seguir. E... – a jovem não se viu corajosa de continuar a frase. Era, percebia agora, incapaz de nunca mais querer vê-lo. De repente, era como se o mundo inteiro tivesse enlouquecido. E ela parecia ter perdido completamente a noção do certo e do errado. Sua hesitação poderia custar-lhe um alto preço.
As duas logo saíram. Teresa ainda tremia como um galho balançante ao vento. A florista dava leves olhadas para trás para assegurar-se de não estar sendo seguida. Agustín permanecia no mesmo lugar, apenas observando as jovens tomando distância cada vez maior. A garrafa de sangue já estava esvaziada e ele queria mais. Foi quando Loredano disse: - Eu lhe dou uma escolha, Don Magaldi: diga-me quem causou a morte daqueles jovens e eu o deixo escapar ou você se mantém calado e eu o mato quando tiver chance.
- Muito provavelmente foram outros vampiros. Não vi nenhum dos companheiros do tal Bardo. Aliás, eu nem sabia da existência deles. Foi só dele que eu chupei o sangue naquela noite. Caso você pergunte, ele está vivo apesar de eu tê-lo quase matado. Cerrei aqueles olhos maldosos porque não suportei o que vi neles – respondeu o vampiro esfregando os braços como se sentisse frio.
- Pode elaborar melhor isso? E onde está esse homem? – Fortesconi não compreendeu aquelas palavras. E desejava saber onde estava Felipe, o Bardo.
- Vou ser franco: naquele olhar tinha uma maldade sem precedentes. Não sei o que ele fez ou deixou de fazer, mas uma que eu vi foi ele quase ter violado aquela senhorita que acabou de ir embora – respondeu ele nervoso. Em verdade, ele fizera algo que decididamente não sabia explicar. Disse logo: - Está no hospital se recuperando. Ele não foi identificado ainda porque a minha mestra tirou os documentos dele. Ela vai entregá-los a polícia agora à noite. E pela manhã do dia seguinte um crime de alguns anos será esclarecido.
- Você não está falando daquele caso da linha desativada, está? – Loredano não podia crer. O italiano fez cara igualmente espantada.
- Não sei os detalhes, apenas dele possivelmente estar envolvido, segundo o que Rufina me explicou quando voltamos – Agustín sentia novamente sede e estava cansado daquele interrogatório. Por Deus, por que não o deixavam ir pacificamente?! Teria de matá-los?
O romeno respirou fundo e disse: - Você pode ir, Voz Sentimental. Provou que, apesar de tudo, é ainda o mesmo homem de antes. Apenas te peço, não faça mais essas coisas com senhoritas inocentes mesmo elas pedindo. Você pode comprometer a reputação delas mesmo não tendo a intenção de fazê-lo.
- O Loredano tem razão. E só pra sua informação, minha prima tem um pretendente – Fortesconi o olhou muito bravo. Pensava seriamente que era melhor acabar com ele antes que o limite fosse ultrapassado sem chance de volta.
- Boa noite, senhores. Algum dia nós nos veremos de novo – disse Agustín para logo dar as costas aos dois, que retribuíram a despedida. Um mais calmamente e o outro achando que o melhor era cortar o mal pela raiz.
O vampiro novamente havia tomado as ruas da cidade com seus passos rápidos e movimentos ágeis. Apenas queria que aquela noite acabasse logo. Desejava dormir. Queria mais que tudo esquecer-se daquela noite no cemitério. Apenas queria fingir que nada daquilo tinha acontecido. Entretanto, a imprensa não parava de falar de sua morte “temprana” e trágica. Menos ainda paravam os prantos e lutos por sua pessoa. Perguntou-se se era digno de tudo aquilo. Não se considerava a melhor das pessoas a despeito de nunca ter feito nada digno de ódio ou semelhante. Entretanto, não era perfeito e jamais o seria. Menos ainda agora, que estava disposto a matar para obter alimento.
Ele só podia fazer uma coisa: seguir em frente. Viver uma noite de cada vez.