O piano solitário
Era noite fria, de novo. Uma daquelas noites em que você não é capaz de dormir direito. Pelo menos era assim que Padre Mariano Díaz se sentia, principalmente porque as coisas em Buenos Aires andavam cada vez mais esquisitas. Só Deus sabia até onde a Criança Pesadelo seria capaz de chegar ou o que Mariano Amenábar faria quando o selo de Augusto Vandor rompesse e ele saísse de vez da sua prisão tumular na Chacarita.O religioso sabia, no entanto, que Leopoldo Belmondo daria um jeito da situação ficar a favor dele. Aquele espanhol era inteligente e astuto, o tipo de pessoa que mesmo na mais desvantajosa situação, conseguia dar a volta por cima sem sofrer muitos danos. Se bem que essa última parte era literal.
Para piorar a madrugada, que já estava uma merda, na opinião dele, ele teria de sair naquele breu do caramba para um bar musical em um dos mais famosos bairros boêmios da capital. Porque o dono andava as raias do desespero pois o piano do local tocava sozinho todas as noites e sempre a mesma música perturbadora. A tocada quase sempre espantava os clientes, correndo apavorados se perguntando que coisa estranha e sinistra era aquela.
O frio era cortante, daquele de fazer até o mais valente se esconder debaixo das cobertas sem coragem alguma para sair de casa. E noite afora ia o padre. Devidamente agasalhado com imenso casaco forrado de pele de ovelha, um par de luvas do mesmo material e um gorro para proteger as orelhas do vento que fazia um zunido muito irritante e gelado. Andava pela rua querendo encontrar um ponto de táxi e um veículo que pudesse levá-lo à Palermo. Pois decididamente não havia ônibus àquela hora. Pelo menos Gregorio dormia placidamente no quentinho e não ia ter que enfrentar um possível fantasma. O caso parecia bem o tipo, considerando a descrição do dono do bar sobre a situação que ocorria.
Ótimo, mil vezes ótimo. O ponto de táxi estava vazio e só Deus sabia que horas chegaria um veículo, ainda mais naquele horário, onde um monte de rapazes e moças com álcool até o cérebro estaria saindo das baladas para ir para casa dar incontáveis desculpas aos pais, isso se ainda morassem com. Foi quando uma voz ecoou próxima: - Quer uma carona, padre?
- Oras, Coviello, quanto tempo faz que não te vejo. Você e a Rebeca andaram sumidos nesses últimos meses. Conseguiram alguma pista sobre a Criança Pesadelo ou o Amenábar? – padre Mariano não exatamente ficava feliz aceitando carona de vampiro, mas a ausência dos táxis estava ferrando tudo.
- Você sabe que pode me chamar de Agustín, padre – disse o vampiro, nada parecido com o cantor popular dos anos 20 e 30 em razão do distinto visual que agora possuía: o cabelo sempre ao natural, jeans azuis surrados, botas de cano longo escuras e um sobretudo negro, abotoado em um único botão, por cima de uma blusa igualmente preta.
- Desculpa, é hábito. Então, alguma pista? – o padre acabou por aceitar a carona e logo estava se acomodando na carona frontal de um Volvo preto.
Agustín ligou o carro e respondeu: - Infelizmente nós perdemos o rastro daquele demônio desgraçado. Quanto ao Amenábar, ele parece estar juntando aliados na Europa e até mesmo no Brasil. Parece que o filho da mãe está mais que disposto a ter a cabeça do Leopoldo, porém, estou certo de que existe alguma razão bem maior por trás do simples “poder absoluto na Argentina”, só não me pergunte o que.
- Se eu soubesse, te ajudaria, mas também não tenho ideia. O Leopoldo não é do tipo que desembucha sempre. Ele é tão quieto que eu às vezes tenho medo – disse o religioso.
- Você não é o único. Todo mundo às vezes tem um imenso medo dele. Aliás, todos não. A Paquita Bernardo jamais o teme, seja como for que ele aja. Aquela vampira tem uma coragem fora do comum até mesmo para nós vampiros – respondeu o vampiro “tanguero” como se dissesse que “os quietinhos sempre são os piores”.
“E também é muito quietinha”, pensou o religioso cruzando os braços porque dentro do carro parecia estar mais frio que do lado de fora quando Magaldi perguntou: - Você quer ir onde?
- Palermo. É um bar musical em uma rua sem saída próxima de um hotel abandonado. Tem um fantasma assombrando um piano pelo que o dono descreveu da situação – respondeu Mariano sentindo um pouco de calor após o motorista ligar o ar.
- Eu sei onde é. Costumo cantar lá às vezes embora a minha voz não seja a mesma de quando eu era vivo – disse Magaldi despreocupado ao que Díaz respondeu sorrindo: - No entanto, não deixa de ser bonita.
Agustín se viu rindo levemente do elogio. Após isso, o trajeto até o local indicado teve algumas poucas palavras, já que o padre sentia sério receio em conversar longamente com vampiros. Sua primeira experiência com eles lhe deixara marcas das quais ele queria olvidar-se para sempre.
- Já chegamos, padre. Tenho toda a noite, então vou esperar aqui. Não é seguro você voltar sozinho depois de terminar com isso – disse Agustín ao que o padre quis recusar, mas achou que fazer desfeita não era educado, especialmente porque seu instinto de Caçador lhe dizia que vinha uma tormenta das muito feias.
O religioso entrou cuidadosamente no local e aliviou-se ao ver que o dono o esperava: - Você está atrasado, mas, pelo menos você apareceu.
- E o senhor pensa que é muito fácil achar condução nessa merda de horário. Só porque você quer – respondeu ele com incomum rudeza para um religioso para depois tirar o casaco, as luvas e o gorro.
- Desculpe, é que esse piano tocando sozinho está me levando à loucura! – disse o homem a ponto de arrancar os cabelos de tão nervoso.
De fato, a música que tocava era realmente estranha e perturbadora, como se o fantasma, ou o que fosse que estivesse manipulando aquele instrumento, quisesse dizer algo. A composição durava trinta minutos entre começo, meio e fim...
- Me deixa perguntar: de onde veio esse piano?
- Eu o importei da Espanha faz alguns anos quando meu antigo instrumento foi danificado, de modo irreversível, durante um assalto – disse o proprietário estranhando a pergunta do religioso.
- Certo. E de quem você comprou? – Díaz queria o máximo de informações possíveis enquanto observava a parte de baixo com agudo interesse.
- Eu comprei de um antiquário pela minha conta no eBay e tive que pagar um olho da cara para importar, mas valeu a pena, até começar a acontecer isso – o homem suspirou profundamente.
- Olha, Román, eu pergunto isso tudo porque acho que sei quem pode estar assombrando esse piano. Só que não faz sentido, pelo menos acho, se bem que considerando como aconteceu... – o padre parecia muito vago em relação ao que dizia.
- Padre, quem você acha que pode ser ou é o fantasma? – Román não parecia muito feliz imaginando que resposta Mariano lhe daria.
- No entanto, ele não tocava piano exatamente, esse é justamente o ponto que não encaixa! – o padre não entendia como uma assombração podia fazer algo como aquilo.
- Padre, por favor, o que está havendo?! – o dono do bar quase berrava.
- Antes que eu te diga tudo, quero que você saiba sobre uma coisa: esse piano ia ser um dos instrumentos a serem tocados em “Don Juan Tenorio”, obra onde o Waldo de los Rios estava trabalhando quando se matou, o que quer dizer... Ah meu Deus – o padre estreitou os olhos sobre o piano e logo disse: - E a música possivelmente devia estar no concerto, mas nunca foi usada.
- Padre, como você sabe disso tudo? O que tá havendo? – Román observava sem entender.
- Esse piano tem uma história muito trágica por trás e foi isso que causou o suicídio do Waldo de los Rios. Eu sempre achei que isso não fazia sentido, mas essa música que toca no piano tem seus originais exatamente aonde eu imaginei que eles estariam – disse o padre retirando cuidadosamente de dentro do instrumento, mais precisamente de um compartimento secreto o que parecia ser um maço de folhas muito antigo: - Eu devia ter reconhecido essa merda quando vi.
- Nunca tinha visto isso! Como que eu não notei?! E o que são essas partituras? – o dono do bar musical estava muito surpreso.
- Há pelo menos um século e meio, uma história muito parecida com a original de “Don Juan Tenorio” ocorreu aqui na Argentina, só que “a emenda foi pior que o soneto” – respondeu o religioso para depois dizer contar que os apaixonados da trágica história real haviam se enamorado um do outro por causa da música. E a jovem Antonia Cerrados era uma grande compositora, porém, proibida de ficar com seu amado Genaro Lunadei por razões de desavenças envolvendo a má fama do rapaz, ela bebeu veneno após deixar uma pequena composição contando sua história.
E o rapaz, ao saber do ocorrido, se matou com um tiro após tocar a composição, amaldiçoando o instrumento e as partituras antes de seu último suspiro, dizendo que qualquer um com desavenças internas estaria condenado à morte se ouvisse a música.
- Então você acha que o Waldo de los Rios ouviu isso e... se suicidou? – Román arrepiou-se ao imaginar que ele próprio poderia se matar, pois já tinha ouvido aquela música várias vezes.
- Acho que no fundo ele sabia sobre isso. Essa é a razão pela qual ele assombra esse piano: evitar que mais pessoas façam o que ele fez. No entanto, tem uma coisa que não encaixa: esse maestro não exatamente tocava piano, então como ele faz isso? – Mariano tentava entender aquele inacreditável absurdo.
- Padre, eu não entendo dessas coisas até porque não estudei música, mas, não é estranho que ele soubesse tocar um pouco, já que ele, além de compositor e maestro, era arranjador. E sabe do que mais? Essa música não conta apenas uma história, tem algo maior por trás, eu não sei bem o que. Acho que só mesmo o fantasma para dizer – a voz do proprietário do bar quase não saía de tanto nervosismo.
Díaz logo tratou de fazer a Oração de São Francisco de Assis, que era, naquele caso, um selo de paz entre o exorcista e o aquele tinha de ser enviado para o outro lado. Foi quando a silhueta de um homem grande e corpulento usando óculos ficou bastante clara na escuridão do bar...
- Eu bem que imaginei.
- Agora você entende, padre? – o fantasma perguntou serenamente, como esperando ser enviado de vez para o plano dos espíritos.
- Eu sei, a música não conta apenas uma tragédia amorosa, ela se torna uma maldição para quem possui desavenças internas e não consegue desamarrar os próprios nós. Você nunca pôde desamarrar completamente os nós da sua vida, não é? Filho de gente famosa, pressão, fama, casamento, depressão, em suma, faltava algo dentro de você. Ou você tinha em excesso. Nunca saberei e sinceramente, não preciso. Eu te entendo – suspirou o religioso como se aquela fosse sua própria vida e depois dizendo:
- Admito, no entanto, que você foi muito nobre protegendo as pessoas de um destino trágico. Ninguém tem culpa dos erros dos outros. Apenas a própria pessoa tem que, e deve assumir a responsabilidade. Suicídio nunca foi caminho. Todos deveriam saber que apenas Deus tem o poder de tirar a vida quando é a hora. E quem mata por motivos torpes está condenado à danação eterna.
- Nem todos entendem. Eu não entendi, no começo. É por isso que a humanidade tem caminhado desse modo – respondeu o fantasma, deixando até Román à beira das lágrimas.
- Prometo que vai ficar tudo bem quando acabar – disse o padre para em seguida pedir ao dono do bar um pé de cabra, pois naquele piano tinha mais do que um tamanho incomum de parte inferior e uma partitura amaldiçoada.
Receoso, o proprietário permitiu que o padre abrisse a parte de baixo do piano, revelando um macabro conteúdo: dois esqueletos abraçados que eram claramente um casal, mais precisamente, um homem e uma mulher do século dezenove, o tempo indicado pelas roupas antiquadas...
- Padre, como... você sabia disso? – o pobre homem se encontrava a ponto de vomitar.
- Essa história me foi passada pelo meu mestre, Padre Jacó. A criada da pobre senhorita Cerrado, inconformada com o trágico fim de um amor tão bonito, desenterrou os cadáveres dos apaixonados com ajuda do marido e ele, sendo um excelente marceneiro, fez do piano o eterno jazigo dos amantes. Claro, isso se você não levar em consideração que eles tiveram que ser praticamente entochados ali dentro – nem mesmo o padre deixava de ficar horrorizado ao dizer aquilo ao que Román não aguentou mais e vomitou tudo o que pôde no chão enquanto o religioso continuava:
- Passei anos procurando esse piano. Meu mestre me fez jurar que eu ia acabar com isso porque não pôde fazê-lo e achava essa história cruel e absurda. E ele já era bem velho quando comecei na função de caçar monstros e fantasmas.
- Padre, faça logo o que tem de fazer. Todos nós merecemos descanso – o fantasma deu uma olhada para o piano e de repente, uma horrível imagem materializou-se naquele ponto diante de todos: os dois amantes mortos olhavam o padre com seus olhos vazios de buraco negro.
Sem receio algum, Mariano Díaz levou os corpos já em ossos para fora do bar e usando o saco de sal retirado de um dos bolsos da batina, espalhou uma quantidade considerável sobre os esqueletos. Em seguida usou os fósforos de uma caixa guardada no balcão do estabelecimento e queimou, sem piscar, os cadáveres já podres, ao que sinistros silvos de dor e agonia de repente musicaram pela rua como notas desordenadas de um concerto sem maestro.
- Estou surpreso com o quão incrível é a sua falta de medo para um humano – disse Agustín Magaldi encostado ao Volvo apenas ouvindo, e agora observando, a situação.
- Não é falta de medo, Coviello. Eu tenho medo até demais justamente por ser humano. E se fiz isso é porque achei que era a coisa certa. Ninguém merece sofrer pelos erros dos outros, não importa o quão certo seja seu pensamento sobre o que a outra pessoa faz de errado – disse ele duramente, como se mostrasse não ser tão santo quanto se esperava de um religioso.
- Você é bom homem, padre. Não sofra tanto apenas por ter errado no passado. Todos nós somos fracos em algum ponto da vida – o fantasma de Waldo de los Rios parecia mais que pronto para partir de vez ao admitir sua fraqueza.
- Nunca vou entender a mente humana, ou fantasma, por mais que eu queira – um riso amargo saiu dos lábios do padre. Depois o mesmo citou o Salmo 91 mais a Oração de São Francisco apontando a cruz para o fantasma, cujos contornos aos poucos sumiram. Não sem antes brotar daquele rosto redondo que outrora fora alegre um sorriso de agradecimento e adeus.
- Nem acredito... que acabou. Finalmente – suspirou Román misturando risos e lágrimas na voz.
Sem mais palavras, o padre despediu-se e partiu de volta à igreja onde morava, com a consciência de ter novamente praticado o bem.
Personagem histórico:
Personagem não-histórico: Román Trujillo - Dono de um bar musical no famoso bairro portenho de Palermo, é um bocado medroso e quase sempre se mete em algum problema que o padre Mariano tenha que resolver, pois é conhecido por seu inacreditável faro para se meter nas mais variadas e absurdas encrencas.
Espero que tenham apreciado mais uma história dos vampiros potenhos,

